O computador
sobre a prancheta
Reflexões sobre a utilização da informática
na concepção dos espaços arquitetônicos*
José Maria
Coelho Bassalo
Estamos vivendo o momento
em que se massifica no Brasil o uso da informática
no processo de projetação arquitetônica.
Sendo um país de dimensões continentais, apresenta,
como se sabe, expressivos contrastes sócio-culturais,
possuindo, assim, um quadro bastante heterogêneo em
suas realidades, inclusive no que diz respeito ao grau de
auxílio que a informática vem prestando à
elaboração dos projetos de arquitetura. Em alguns
de nossos Estados mais desenvolvidos, o computador é
uma presença natural em grande parte dos escritórios
diretamente envolvidos com a produção da arquitetura.
Por outro lado, em centros menos favorecidos, aqueles que
informatizaram o ato de projetar são considerados profissionais
de exceção. Independentemente desse desnível,
o país inteiro já vive, ratifiquemos, em maior
ou menor escala, a presença do computador “sobre
a prancheta”.
Tal qual ocorre em qualquer
inovação, a informatização da
concepção dos espaços trouxe consigo
um sem número de “mitos” , alguns verdadeiros
outros não, os quais têm contribuído para
aquecer a discussão sobre essa nova face do procedimento
projetual, dentro e fora da comunidade dos arquitetos. Vistos
os diversos aspectos dos debates, alguns deles levantam questões
que colocam em dúvida a validade daquela nova maneira
de conduta, chegando até mesmo a apontar conseqüências
supostamente nefastas.
Existe, por exemplo, a opinião
de que o uso do computador descaracteriza o aspecto poético
e artístico do ato da concepção arquitetônica,
este imaginado como um momento sublime do “livre correr
do lápis sobre o papel” . Essa idéia é
sustentada pelos que defendem ser o arquiteto um artista criador
que modela e comunica a sua futura obra através do
próprio desenho manual. Entretanto, as formas de expressar
as obras de arquitetura nem sempre foram os tradicionais,
e ainda atuais, desenhos feitos à mão. Na Idade
Média, por volta dos séculos XII e XIII, no
interior das Bauhütten, isto é, das corporações
de ofícios dos mestres construtores das grandes catedrais,
todas concebidas de forma artistíca e sob uma atmosfera
poética, “quase nunca existiam projetos no papel;
o grupo de trabalho vivia junto, discutia a tarefa comum e
transpunha as idéias diretamente para o material”
, dispensando sua “...prévia representação
sob a forma de desenho.” Portanto, associar o trabalho
do arquiteto apenas ao desenho ou a qualquer outra forma primordial
de expressão, pode confundir as ações
de criar e representar o objeto arquitetônico, mascarando
o fato de a concepção ser a atividade na qual
realmente residem a arte e a poesia desse profissional.
As obras arquitetônicas,
em seus momentos de gênese, sempre estarão envolvidas
por uma aura que lhes garante o sopro do engenho e arte de
que falava Camões em Os Lusíadas, independentemente,
portanto, da pluralidade das linguagens através das
quais são concebidas - modelos, desenhos manuais ou
até mesmo desenhos computadorizados.
Outra pré-concepção
ou prevenção a respeito do computador é
a de que haveria um cerceamento da liberdade de criação
no ato de com ele projetar. Essa observação
poderá ser procedente, dependendo, porém, da
forma como o computador seja utilizado na projetação
e o que dele se espera nesse processo. Se o projetista adotar
um determinado software de desenho - o chamado CAD - para
auxiliar sua criação, mas restringir seu universo
de soluções formais àquelas que o programa
tiver recursos para gerar, ou apenas àquelas que souber
nele produzir, certamente estará limitando suas possibilidades
projetuais. Outro fator que “inibe a criatividade”
do projetista, é ele esperar que o computador o substitua,
e assuma sozinho a tomada das decisões ao longo do
processo criativo. Se imerso nessa expectativa, pouco ou nada
produzirá, de vez que a função da máquina,
no referido processo, jamais atingirá tal autonomia,
conforme nos reportaremos mais adiante. Argumentações
dessa natureza, por mais absurdas que pareçam, são,
apesar de sua evidente falta de consistência, e portanto
facilmente contestáveis, bastante comuns na discussão
da inserção da informática na arquitetura,
e externam, a nosso ver, uma enorme resistência que
muitos profissionais ainda possuem frente ao uso do computador.
Ressalte-se, contudo, que
a resistência não é de todo infundada.
Diversos profissionais já me fizeram a procedente observação
de que os softwares disponíveis atualmente não
são muito “práticos” e desenhar
com eles ainda é difícil, sendo muito mais rápido
o velho processo da “munheca”, do que o do teclado.
De fato, no Brasil, os mais difundidos programas voltados
exclusivamente para o desenho arquitetônico ainda não
evoluíram o bastante, e precisam progredir muito, sobretudo
no que diz respeito a sua utilização nas fases
mais preliminares da concepção do projeto, ou
seja, na do “rabisco”, na do croquis, enfim, naquelas
em que as formas ainda estão rarefeitas, imprecisas,
presentes mais nas idéias do arquiteto do que no papel.
Pouquíssimos profissionais
já trabalham exclusivamente na tela, concebendo o projeto
no computador, desde o “zero”, mesmo que utilizando
softwares ainda inadequados. Atualmente, e na maioria dos
casos, essa fase ainda é desenvolvida de forma mista,
com os desenhos produzidos pelo computador sendo retocados,
modificados, evoluídos pelo lápis, para depois
retornar ao computador. Essa situação, além
de passageira (pois novos softwares estão sendo desenvolvidos
para suprir essas deficiências), não justifica,
em hipótese alguma, a não utilização
do computador no processo projetual.
A propósito, está
sendo desenvolvido pelo professor Steven Roberts, pesquisador
inglês da Universidade Federal de Minas Gerais, um software
capaz de transformar croquis em imagens vetoriais, ou seja,
um tipo de “desenho de computador”, tanto em 2D
como em 3D. Outro exemplo é o do professor Erivaldo
Araújo Jr., da Universidade da Amazônia -UNAMA-,
atualmente cursando mestrado no Japão, que trabalha
com um programa que possibilita as referidas transformações.
A espera de que os softwares
de desenho atinjam um nível que justifique sua utilização
traz consigo, também, um outro aspecto bastante característico
de falsas expectativas criadas em torno do computador. Existe
a esperança de que os programas voltados para a arquitetura
tornem-se mais simples e mais fáceis, no sentido de
receber menos ordens para trabalhar, ficando, portanto, mais
autônomos e aliviando a responsabilidade decisória
do projetista usuário. Na verdade, a evolução
desses softwares caminha em outra direção, fazendo
com que eles se versatilizem para colocar à disposição
do usuário uma variedade maior de opções
de comandos acessados de forma cada vez mais interativa. Assim,
a responsabilidade desse usuário aumenta, na medida
em que ele tem mais variáveis a manipular, porém
de forma mais simplificada. Não é a independência
do computador que denota sua evolução e sim
a sua dependência, cada vez mais amigável, de
quem nele trabalha. Os programas desenvolvem-se para fazer
o homem produzir mais, e com maior facilidade.
Uma vez superadas essas errôneas
pré-concepções, pulverizadas pela incontestável
necessidade do uso da informática em qualquer área
do conhecimento, evidencia-se uma realidade inevitável
que já está provocando sensíveis alterações,
no caso, no panorama arquitetônico das cidades. Dessa
maneira, é necessário identificar com clareza
o papel desempenhado pelo computador no processo dessas transformações
para que se possa assumir corretamente uma posição
de administradores de seu curso.
As mais objetivas e imediatas
modificações implementadas pela informática
na arquitetura das cidades dizem respeito à nova configuração
assumida pelas demandas físicas dos espaços.
Uma determinada edificação, por exemplo, dotada
de sistemas de computadores controlando sua climatização,
suas comunicações internas e externas ou mesmo
suas circulações verticais, certamente requer
características espaciais, em todos os sentidos, diversas
daquelas que não possuem tais sistemas.
Entretanto, a interferência
do computador na arquitetura é muito mais profunda
do que a questão das distintas necessidades do espaço.
Atingem, inclusive, a forma de buscar soluções
que satisfaçam essas necessidades, ou seja, a atividade
projetual do arquiteto. O processo da projetação,
uma vez desenvolvido com o auxílio da informática,
possibilita, de modo teórico, a obtenção
de resultados - projetos - significativamente superiores,
já que passa a ser instrumentado por uma ferramenta
com maior potencial de produção.
A alteração
da qualidade dos projetos não é resultado de
novos procedimentos metodológicos supostamente trazidos
pelo computador para a fase de projetação, pois
sua adoção nesse processo não provocou
mudanças em sua essência, conservando-se intacta
a responsabilidade do arquiteto na tomada das decisões
projetuais.
Infelizmente, ainda persiste
muita confusão em torno da interpretação
da forma de participação do computador, e a
afirmação de que a informática está
modificando a feição das cidades leva, algumas
vezes, à falsa idéia da máquina atuando
de maneira autônoma na concepção dos espaços
e produzindo, por si própria, a nova arquitetura. Essa
equivocada acepção ainda existe, inclusive,
dentro da nossa esfera profissional, pois muitos arquitetos
pensam que ao informatizarem o ato de projetar, estarão
fazendo uma espécie de parceria com um “arquiteto
eletrônico”, o qual assumirá e resolverá
seus problemas projetivos, conduzindo-os à solução
pretendida.
O professor Fernando Guerra,
da Universidade Federal de Pernambuco, no recente Seminário
Nacional A INFORMÁTICA NO ENSINO DE ARQUITETURA ( Salvador,
Agosto de 1995 ), ilustrou muito bem esse pensamento ao fazer
a seguinte reflexão: Se o computador pudesse resolver
sozinho o que fazer, Oscar Niemeyer, considerado por Edson
Mahfuz como um Arquiteto que “...trabalha com um repertório
formal e compositivo fechado, o qual é aplicado a todos
os projetos” poderia transferir à máquina
a tarefa de projetar, simplesmente informando-a do repertório
que, segundo essa discutida teoria, seria constante em todas
as suas criações. Assim, a máquina manipularia
e decidiria a forma de melhor organizar aquele repertório.
É evidente que existem duas heresias no raciocínio
acima descrito. Nem Niemeyer possui repertório finito
nem existe computador capaz de, sozinho, produzir Arquitetura.
Por mais sofisticado que seja, nenhum software possui autonomia
suficiente para assumir, em momento algum, as funções
conceptuais de qualquer projetista. Não se faz Arquitetura
sem Arquiteto .
Esclarecido e desmontado o
falso mito da independência do computador, evidencia-se
sua função de instrumento, de ferramenta utilizada
pelo projetista na condução do processo de concepção,
ferramenta essa que executa, com mais eficácia, repitamos,
o mesmo ofício, por exemplo, do lápis e papel.
O processo da criação
do objeto arquitetônico, como sabemos, desenvolve-se
em etapas nem sempre seqüenciais, nas quais, em suma,
a obra é construída mentalmente, passando por
sucessivas metamorfoses até atingir sua forma final.
Nesse curso, o arquiteto dialoga consigo mesmo durante a modelagem
de sua obra utilizando, sobretudo, uma linguagem gráfica
para visualizar e avaliar as conformações provisórias
ao objeto conferidas, rumo à sua configuração
definitiva.
A qualidade da obra arquitetônica
é conseqüência, também e principalmente,
de seu projeto. Certos problemas apresentados por edificações
originam-se de más decisões projetuais, muitas
vezes decorrentes dos limitados meios de representação
gráfica que o desenho, “na munheca”, possibilita,
não permitindo a identificação, ainda
em projeto, de todos os pontos teoricamente falhos da futura
edificação.
A superior eficácia
do instrumento computacional na projetação evidencia-se
na maior velocidade e precisão com que ele escreve
a referida linguagem gráfica, permitindo visualizações
mais próximas às da realidade, colocando à
disposição do arquiteto múltiplas perspectivas,
animações tipo “walk-through” e
até as atuais imersões em realidade virtual,
que conferem àquele uma maior capacidade de previsão
dos aspectos positivos e negativos de sua criação.
Simuladas com maior fidelidade, as obras arquitetônicas
podem, durante suas elaborações, ser analisadas
com maior clarividência e, com isso, atingir melhores
níveis em sua forma geral.
Desse modo, o computador realmente
já possibilita e possibilitará ainda mais o
aparecimento de uma nova arquitetura, não apenas alterando
as demandas dos espaços construídos, mas também
elevando suas qualidades de maneira geral, conforme já
nos referimos. Essa ascensão não será
alcançada por nenhum fantástico método
projetual computadorizado que conduza o arquiteto, por um
caminho mágico, rumo a soluções maravilhosas,
mas através das concepções de um novo
profissional, que, atuando com um superior instrumental de
trabalho, estará potencialmente melhor preparado para
produzir uma arquitetura de nível mais elevado.
Projetar com o auxílio
do computador, entretanto, exige preparo. Não se deve
pensar que basta adquirir esse instrumento para dele se servir.
É preciso ter “...a consciência de que
o novo sempre exige aprendizado, revisão de comportamentos
e posturas...” . O projetista para usar eficientemente
um CAD terá que se despir de todas as suas possíveis
pré-concepções com relação
ao então contexto em que vivia e passar por um novo
tipo de aprendizado. Este irá desde o manejo físico
do equipamento até à habituação
em visualização de desenhos na tela ao invés
de fazê-lo tradicionalmente apenas nos papéis.
A preparação
acima referida não se limita ao treinamento de pessoal,
fase que, para alguns, pode ser difícil de transpor,
porém nunca impossível. É necessário,
também, um prévio e vasto trabalho de “arrumação”
física do escritório, incluindo novo lay-out,
outro mobiliário, diferente sistema de arquivamento,
etc. Além disso, há também a preparação
ou “customização” das máquinas
para ajustarem-se ao novo padrão adotado pelo projetista
na apresentação dos projetos , tais como elaboração
das bibliotecas de símbolos e equipamentos, padrões
de cotagem, nomenclatura de camadas, tipo de fonte de texto,
tamanho de pranchas, dentre outros.
A informatização
da produção dos projetos não está
se estabelecendo apenas por sua eficácia, mas também
por imposições mercadológicas. Nos últimos
anos, a maioria dos grandes clientes dos principais escritórios
de arquitetura do Brasil - as empresas multinacionais ou as
construtoras de grande porte, por exemplo - passaram a exigir
que seus projetos fossem desenvolvidos em CAD. Dessa forma,
grande parte da geração de profissionais que
hoje se utiliza do computador para projetar, também
o faz, de certa maneira, compulsoriamente, pois foi obrigada
a adotar esse outro instrumento de desenho, o qual não
existia em seus tempos de estudantes. Esse fato talvez auxilie
a explicar tantas resistências que certos profissionais
encontram frente ao uso do computador, considerado por alguns
como uma “ameaça” à velha lapiseira,
instrumento com o qual externaram, ao longo da vida, os desígnios
apaixonados de suas mentes. Essa geração pioneira,
entretanto, logo começará a conviver com outro
grupo de profissionais, formados sob outra estrutura de ensino,
que certamente não guardará com a lapiseira
a mesma relação de “amor e parceria”
de seus predecessores.
Hoje, incluída como
matéria obrigatória de todos os cursos oficiais
de arquitetura do país, a informática aplicada,
embora ainda ministrada em disciplinas específicas,
vai ganhando, espontânea e gradativamente, maior importância.
Permeará todos os outros conteúdos disciplinares
do curso, logo estando presente, por exemplo, nas disciplinas
das áreas de Projeto, Teoria e História, Plástica,
Desenho, dentre outras. Essa nova configuração
curricular nas Universidades, ora em fase de implantação,
propiciará o aparecimento de uma nova geração
de profissionais ensinados a pensar a arquitetura através
do computador, para a qual este será o instrumento
natural de seu trabalho cotidiano como a velha lapiseira ainda
o é para a maioria de nós.
* Palestra proferida em 28/09/95,
por ocasião da IV SEMANA DO CENTRO DE CIÊNCIAS
EXATAS E NATURAIS, realizada pela Universidade da Amazônia
- UNAMA, em Belém-Pará.
NOTAS E BIBLIOGRAFICAS
1TEPERMAN, Sérgio.
“Computador Centimetral”.Revista AU, n?59, p112.
2CLARO, Anderson. “A Computação
Gráfica na Praxis da Arquitetura”. Anais do 2?
Simpósio de Computação Gráfica em
Arquitetura, Engenharia e Áreas Afins. Salvador, Bahia,
UFBA, 1994, p19.
3GROPIUS, Walter. “Bauhaus: Novarquitetura”.
Editora Perspectiva. São Paulo, 1972, p125.
4BICCA, Paulo. “Arquiteto a Máscara
e a Face”. Projeto Editores Associados. São Paulo,
1984, p106.
5CAMÕES, Luis de. “Os Lusíadas”.Porto
Editora Ltda. Porto, sd., p53.
6CAD é a abreviatura de Computer Aided Design,
que significa projeto auxiliado por computador. É, também,
utilizada como sinônimo de software para desenho.
7TEPERMAN, Sérgio. “Computador Centimetral”.Revista
AU, n?59, p112.
8MAHFUZ, Edson. “O Clássico, o Poético
e o Erótico”. Revista AU, n?15, p60.
9Ver artigo de TURKIENICZ, Benamy. “Brasília,
A Arquitetura da Crítica”.Revista AU, n?55, p53-56,
no qual o autor discorda da referida teoria de Edson Mahfuz.
10Entenda-se por Arquiteto não apenas aquele
que possui um diploma expedido por uma Universidade, mas aquele
que domina a ofício da ordenação dos espaços.
11ANDRADE, Vania Hemb M; LEÃO DE AMORIM, Arivaldo
e PEREIRA, Gilberto Corso. “Ensino de Projeto Arquitetônico
e CAD: Uma Experiência Piloto”. Anais do 2? Simpósio
de Computação Gráfica em Arquitetura, Engenharia
e Áreas Afins. Salvador, Bahia, UFBA, 1994, p 143.
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